domingo, 30 de maio de 2010

"Feio quanto parece"

Por Thomas L. Friedman, do The New York Times

Confesso que quando vi a foto do presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, com seu colega brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, e o premier turco, Recep Tayyip Erdogan, de braços levantados, depois de assinar o acordo para supostamente desarmar a crise sobre o programa nuclear iraniano, tudo o que pude pensar foi: há algo pior do que assistir a democratas vendendo outros democratas a um criminoso iraniano, que nega o Holocausto e frauda eleições, só para implicar com os EUA e mostrar que eles também podem tomar parte do jogo dos poderosos? Durante anos, países não alinhados e em desenvolvimento acusaram os EUA de satisfazer cinicamente seus interesses, sem levar em conta os direitos humanos, observou Karim Sadjadpour, da Carnegie Endowment. À medida que Turquia e Brasil aspiram a atuar globalmente, vão se defrontar com as mesmas críticas que antes faziam. A visita de Lula e Erdogan ocorreu dias após o Irã executar cinco prisioneiros políticos. Eles abraçaram Ahmadinejad, mas nada disseram sobre direitos humanos.

Turquia e Brasil são democracias nascentes que superaram suas próprias ditaduras militares. É vergonhoso que seus líderes fortaleçam um presidente que usa o exército para matar democratas iranianos que buscam a mesma liberdade política e de expressão de que turcos e brasileiros hoje desfrutam. Lula é um gigante político, mas moralmente tem sido decepcionante, disse Moisés Naím, editor da revista Foreign Policy. Lula tem apoiado os que frustram a democracia na América Latina, observou. Ele regularmente elogia Hugo Chávez, da Venezuela, e o ditador cubano Fidel Castro e agora Ahmadinejad , enquanto denuncia a Colômbia, uma das histórias democráticas de sucesso, porque o país permitiu que os EUA usem bases locais para combater o narcotráfico. Lula tem sido ótimo para o Brasil, mas terrível para seus vizinhos democráticos, disse Naím. Lula se tornou conhecido como líder dos trabalhadores no Brasil, mas virou as costas a líderes dos trabalhadores duramente reprimidos no Irã.

O Irã tem hoje 2.200 quilos de urânio com baixo teor de enriquecimento. Pelo acordo do dia 17, o país supostamente concordou em enviar 1.200 quilos à Turquia para conversão em combustível para seu reator médico em Teerã que não pode ser usado para uma bomba. Mas isto ainda deixaria o Irã com cerca de 1.000 quilos, que o país continua se recusando a submeter à inspeção internacional e está livre para continuar a reprocessar aos elevados níveis de enriquecimento requeridos para a bomba. Especialistas afirmam que o Irã levaria seis meses para acumular novamente quantidade suficiente para uma arma nuclear. Assim, o que esse acordo faz é o que o Irã queria: enfraquecer a coalizão que pressiona o país a abrir suas instalações nucleares aos inspetores da ONU e, como um bônus especial, legitima Ahmadinejad no primeiro aniversário da repressão ordenada por ele contra o movimento democrático iraniano, que pedia uma recontagem dos votos das eleições fraudulentas de 2009. A meu ver, a Revolução Verde no Irã é o mais importante movimento democrático espontâneo a surgir no Oriente Médio em décadas. Ele foi suprimido mas não desapareceu e, no final das contas, seu sucesso é a única fonte de segurança e estabilidade.

É como me disse Abbas Milani, da Universidade de Stanford: A única solução de longo prazo para o impasse é um regime mais democrático, responsável e transparente em Teerã. Os clérigos iranianos praticam com sucesso um grande jogo de enganação ao fazer da questão nuclear quase o único ponto focal de suas relações com os EUA e o Ocidente. Estes deveriam ter adotado uma política de duas vias: sérias negociações sobre a questão nuclear e não menos sérias discussões sobre direitos humanos e democracia no Irã. Preferiria que o Irã nunca tivesse a bomba. O mundo seria muito mais seguro sem novas armas nucleares, especialmente no Oriente Médio. Mas se o Irã conseguir, fará uma grande diferença se o dedo no gatilho for o de um Irã democrático ou o da atual ditadura religiosa e criminosa. Quem trabalhar para adiar isto e promover a democracia no Irã estará ao lado dos anjos. Quem ajudar esse regime tirânico e der cobertura a sua maldade nuclear um dia terá de prestar contas ao povo iraniano

Publicado em O Globo (27 de Maio de 2010)

sábado, 29 de maio de 2010

Portas Fechadas

João Pereira Coutinho, colunista da Folha de São Paulo

Noam Chomsky foi impedido de entrar em Israel. Ocorreu na semana passada: o famoso linguista do M.I.T. desejava entrar no país. Para ensinar na Universidade Birzeit, em Ramallah, e ter um encontro com o premiê da Autoridade Palestina, Salam Fayyad. Um guarda travou os intentos de Chomsky, interrogou o octogenário durante horas e disse-lhe no fim: Israel não gosta do que você escreve. O ministro do Interior israelense, instado a comentar a atitude do guarda, afirmou tratar-se de um "mal-entendido". E garantiu que a autorização da entrada de Chomsky seria "reavaliada". Chomsky não deseja ser "reavaliado", muito menos por um governo que ele compara regularmente com o regime sul-africano em pleno apartheid. Ou, pior, com a União Soviética: em declarações ao jornal "Haaretz", disse o professor que o comportamento de Israel fazia lembrar o Kremlin do camarada Stálin. A comparação talvez soe um pouco excessiva, uma vez que Chomsky não foi fuzilado de imediato ou, em alternativa, enviado para um campo de concentração na Sibéria local. Mas entendo o estado de espírito do professor Chomsky.

Entendo e solidarizo-me com ele: a ser verdade que o Estado de Israel impediu conscientemente a entrada de Chomsky no território, a atitude é lamentável. E lamentável porque constitui uma negação da democracia pluralista que Israel representa - coisa única no Oriente Médio. Os textos e as posições de Chomsky contra Israel não são do agrado das autoridades? Fato. Como também é um fato que não deve fazer as delícias de Israel as defesas que Chomsky fez de negacionistas do Holocausto, como o infame Robert Faurisson, que teve um prefácio do norte-americano em um dos seus livros antissemitas. Mas pretender punir os críticos externos de qualquer regime, por mais extremistas ou lunáticos que esses críticos sejam, deve merecer o repúdio de qualquer alma liberal que se preze.

Pena que essas almas não abundem por aí. Ou, melhor, só abundam em determinadas situações. Apareceram agora, com o caso Chomsky, prontas a cavalgar a onda antisionista. Nunca aparecem, por exemplo, quando universidades ocidentais desejam boicotar acadêmicos israelenses com o intuito de os impedir de ensinar como forma de punição pelas ações do governo de Israel. Chomsky, nesse capítulo, tem sido exemplar no incitamento ao boicote, no M.I.T. ou em Harvard. Curiosamente, essa forma de intolerância não perturba os humanistas. E, no entanto, ela sempre me pareceu mais grave e mais insidiosa do que a mera interdição de entrada a Chomsky. No caso do professor, existe pelo menos um comportamento público do personagem que podemos singularizar: uma oposição feroz a Israel, muitas vezes com termos de uma profunda violência moral. Nada disso justifica ações de retaliação, repito. Mas essas ações não nascem do nada: elas são uma reação a qualquer coisa de tangível.

O boicote a acadêmicos israelenses nada tem de tangível ou racional. É sempre uma atitude covarde e impessoal, destinada a punir de forma indiscriminada categorias inteiras de seres humanos. Imitando o pior do pensamento totalitário, os boicotes regularmente promovidos por humanistas como Chomsky enfiam no mesmo saco indivíduos de procedências distintas, com formações e até posições distintas face ao governo de Israel. Não existem dois israelenses iguais, como não existem dois brasileiros iguais. E é até provável, tendo em conta o pluralismo intrínseco da sociedade de Israel, que dois israelenses tenham posições radicalmente contrárias sobre o conflito com os palestinos. Basta ler os jornais do país, a sua literatura, o seu cinema.

Mas isso não perturba a grosseira estupidez dos intolerantes. Como nos piores momentos do século XX, a punição é coletiva: ser "israelense" é sempre um crime, tal como na Alemanha do Reich já era um crime ser "judeu". As patrulhas julgam, condenam e fuzilam. A identidade do réu; sua história; sua eventual defesa - nada é considerado nos julgamentos sumários da Academia. Impedir Chomsky de entrar em Israel é um ato vergonhoso; impedir qualquer israelense de ensinar nas universidades ocidentais é um ato imoral. Tão imoral como discriminar povoações inteiras de negros simplesmente porque são negros. A mentalidade do apartheid existe, sim, mas não onde Chomsky imagina.

domingo, 23 de maio de 2010

A MARCHA DO RIDÍCULO - 'Bobagens de Lula'

Reinaldo Azevedo

Uma coisa não se pode negar: “eles” são profissionais e contam com uma rede estruturada, azeitada e que atua com método. E têm a vantagem de se confrontar com um impressionante amadorismo. Estou me referindo, claro!, aos petistas. E não! Não vou desistir de torrar a paciência dessa gente. E mesmo que a crítica que aqui se faz fosse irrelevante, isso, por si mesmo, não definiria seu erro ou seu acerto. Vamos ver. Lula e a diplomacia megalonanica de Celso Amorim acabam de colher a sua mais formidável e inequívoca derrota, certo?

Bastaram três dias, no entanto, para que renovadíssimos jornais - não há reforma gráfica ou editorial que dê conta de conferir nova aparência ao adesismo - mudassem de rumo e convertessem o vexame numa vitória arrasadora. O cardápio só varia no molho, com mais ou menos teor de lulismo: você prefere o Lula do Jornal A, que teria se credenciado para ser o porta-voz dos emergentes, ou o Lula do Jornal B, candidato a secretário-geral da ONU - mas, consta, ele exige uma ONU diferente dessa para fazer ao mundo esse favor - ou a presidência do Banco Mundial?

Sim, senhores! O PT mudou completamente a pauta e, para espanto do mundo se o mundo se interessasse por aquilo que se publica aqui, Barack Obama - ninguém menos! - passou a ser tratado como uma espécie de besta-fera na luta contra um mundo multipolar. Junto quem! Um dos porta-vozes de sempre nos informa que o presidente brasileiro está decepcionadíssimo com seu colega americano… É como se o víssemos a menear a cabeça em sinal de reprovação: “Este rapaz não aprendeu nada! Precisa passar uns dias comigo aqui”.

O desastre das negociações com o Irã se transformou numa suposta luta dos países emergentes contra os cinco do Conselho de Segurança da ONU, que refletiriam, então, um mundo velho, saído dos escombros da Segunda Guerra. E, no entanto, a questão é extremamente simples: bastaria que o Irã permitisse amplo acesso da AIEA a suas instalações nucleares, pondo um fim a seu programa secreto na área. Diga-me, aqui, pelo amor de Deus: se Mahmound Ahmadinjead tivesse aceitado, junto com a troca de urânio, os outros termos da agência, existiria essa conversa de “países emergentes” contra os “donos do poder”?

Mais ainda: trata-se o Irã como se fosse um país qualquer, que estivesse sendo usado pelas potências como mero pretexto para tentar se agarrar ao que lhes resta de seiva, em seu suposto declínio. O Irã? Não há nenhuma causa melhor do que essa no mundo? Lula foi adotar justamente aquele que financia o terrorismo muito além de suas fronteiras, de maneira clara e decidida? Se bem que é preciso reconhecer: o Irã não é única “causa” de Lula. Há também Venezuela, Cuba, Manuel Zelaya…

A brutalidade da análise não se esgota aí. China e Rússia passaram a defender as sanções, embora não tenham motivos especiais para se subordinar aos EUA, o que, de fato, não fizeram. Os chineses, diga-se, usaram - lá vou eu com um clichê, mas que parece pertinente - a sua milenar sabedoria e defenderam as duas coisas ao mesmo tempo: sanção e negociação. Sabem que a primeira integra o leque de alternativas da segunda.

Que multipolaridade virtuosa seria esse que, na prática, tornaria o mundo menos seguro à medida que abriria caminho para uma corrida nuclear? Ou alguém imagina que os demais países do Oriente Médio se contentariam em ter um vizinho como o Irã com a bomba? “Sanções não vão adiantar”, esperneiam alguns. Talvez não! Então o que seria eficaz? Não sendo a guerra, trata-se de se conformar com a bomba - e com todas as outras que a seguirão. Por que o Brasil tem de ser um “mediador de conflitos” encarregado de demonstrar que o bandido não é assim tão bandido, já o mocinho também tem os seus pecados? Não seria melhor puxar as orelhas do mocinho, então, sem, no entanto, se converter à causa dos bandidos?

Celso Amorim é quem é, mas reconheço a sua competência para pautar energúmenos, que ou caem na sua conversa ou, na hipótese menos virtuosa, dedicam-se à prestação de serviços. E foi ágil, Vazou uma carta de Obama a Lula em que o presidente americano incentiva, sim, a busca do acordo, mas na qual deixa claro que não há saída de o Irã não se submeter às decisões da ONU. E o Irã já disse que não se submete. A carta, no entanto, foi tratada na imprensa nativa como como evidência de uma contradição do presidente americano!

Lula na ONU ou no Banco Mundial? Ele faz, sem dúvida, por merecer. No front externo, a sua grande obra foi ter transformado um pária como Ahmadinejad numa personagem da luta por um mundo multipolar. Mais: se sua iniciativa pró-Irã der certo, estaremos mais perto de uma corrida nuclearmos. Ele é mesmo o máximo!