Samuel Pisar*
Há 65 anos, os soldados russos do marechal Jukov libertavam Auschwitz, enquanto os exércitos aliados, sob comando do general Eisenhower, se aproximavam de Dachau. Para um sobrevivente desses dois infernos, ainda estar vivo e bem, com uma nova e feliz família que para mim ressuscita aquela que perdi, parece quase surreal. Quando entrei, em 1943, aos 13 anos de idade, no sinistro abatedouro de Eichmann e Mengele, media minha expectativa de vida em dias, ou no máximo em semanas.
Em pleno inverno de 1944, o massacre em Auschwitz atingia seu paroxismo, engolindo judeus, é claro, mas também ciganos, dissidentes políticos, prisioneiros de guerra, resistentes ou homossexuais. Em outras partes, todo mundo já sentia que a Segunda Guerra Mundial chegava ao seu fim. Mas nós, nos campos, não sabíamos de nada.
Perguntávamos: o que está acontecendo lá fora? Onde está Deus? Onde está o papa? Alguém lá fora sabe o que está acontecendo conosco aqui? Eles se importam?
Para nós, isolados do mundo, a Rússia estava quase derrotada. A Inglaterra resistia, acuada. E os Estados Unidos? Estava tão longe, tão dividido. Como poderia salvar nossa civilização frente às forças invisíveis do mal absoluto, antes que fosse tarde demais?
A notícia do desembarque aliado na Normandia demorou muito tempo para chegar até nós, em Birkenau. Os rumores de que o Exército Vermelho avançava sobre o front do Leste pareciam bons demais para ser verdade. Mas, enquanto o chão ruía sob nossos pés, o nervosismo dos nazistas ficava cada vez mais palpável. As câmaras de gás cuspiam fogo e fumaça, mais do que nunca.
Em uma manhã cinza e gelada, nossos guardas ordenaram que fizéssemos uma fila, com seus cães selvagens a postos, e nos expulsaram através do maldito portão do campo, com seu slogan tristemente famoso: “Arbeit macht frei” (“O trabalho liberta”). Aqueles dentre nós que ainda estavam aptos para trabalhos forçados seriam evacuados para o interior da Alemanha. Eu já estava embriagado de ansiedade. A salvação parecia tão perto, e tão longe ao mesmo tempo. No último momento, certamente vão matar todos nós. A solução final será concluída. As últimas testemunhas vivas devem ser liquidadas. Como aguentar por um pouco mais de tempo? Eu tinha 15 anos na época, e queria viver.
Nossas marchas da morte, de um campo para outro, continuavam até que nossos torturadores e nós começamos a ouvir explosões ao fundo, que pareciam fogo de artilharia. Em uma tarde, fomos atacados por uma esquadrilha de caças aliados, que nos tomaram. infantaria da Wermacht. Enquanto os SS se jogavam ao chão, com suas metralhadoras atirando para todos os lados, alguém perto de mim gritou: “Fujam!” Arranquei meus tamancos de madeira e corri desesperadamente para a floresta. Lá, me escondi com alguns camaradas, durante semanas, até que fui libertado por um pelotão de soldados americanos. Sim, o milagre aconteceu. Eu estava livre. Meu calvário, meu duelo feroz com o destino havia terminado. Mas ainda não era um final feliz. De repente, me vi diante de um insuportável momento de verdade. Tomei ciência do fato de que estava irremediavelmente sozinho. De que eu era o único sobrevivente de uma grande família. Que todos os rapazes e garotas de minha escola – literalmente todos – também haviam sido exterminados, juntamente com o milhão e meio de crianças que morreram no Holocausto. Todas essas crianças que não viveram, esses escritores que não escreveram, esses músicos que não tocaram, esses sábios que não inventaram, e que teriam enriquecido tanto nosso mundo.
E o que seria de mim? Para onde iria? Minha cidade natal, Bialystok, é uma ruína, ocupada pelos soviéticos. Existiria um lugar nesta terra onde eu poderia me sentir em casa? Ainda não existia Israel nessa época; e o mandato britânico havia fechado as fronteiras da Palestina para os emigrantes judeus. Subi em uma moto potente que havia roubado em uma caserna alemã. Fui percorrendo, dia após dia, as estradas da Baviera como um louco, a uma velocidade incrível, muitas vezes com uma “fraulein” na garupa. Negociei no mercado negro, comprando cigarros de soldados americanos para trocá-los por comida e álcool. Resumindo, derrapei para a autodestruição.
Foi naquele momento que minha tia francesa, Barbara, irmã de minha mãe, e seu marido, Léo Sauvage, jornalista e correspondente de guerra – eles mesmos salvos pelos Justos de Chambon-sur-Lignon – me resgataram dos escombros da Alemanha. Levaram-me a Paris, onde senti o gosto da verdadeira liberdade pela primeira vez. Seis meses depois, fui mandado para o outro lado do mundo, na Austrália, para me esquecer e me recuperar da Europa sanguinária e fratricida de meus pesadelos. E lá comecei minha longa e difícil reabilitação. Pouco a pouco fui me voltando para o futuro. Entendi que sobreviver fisicamente não bastava. Que eu também precisava sobreviver moral, espiritual e intelectualmente. Que a destruição praticada pelo 3º Reich sobre mim e meu povo devia parar.
Foi com uma determinação ilimitada que recomecei a bombear minha adrenalina. Dessa vez, em uma dimensão totalmente diferente, mas com a mesma energia do desespero, como se minha vida dependesse disso novamente. Logo recuperei os seis anos perdidos de estudos. E as universidades de Melbourne, Harvard e Sorbonne fizeram o resto. Aos 25 anos, somente nove anos após minha libertação, tornei-me adido da ONU em Nova York, e depois assessor jurídico no gabinete do diretor-geral da UNESCO. Foi a sede de viver, de aprender e de criar que me levou da escória da condição humana para alguns de seus ápices. O dia internacional estabelecido pela ONU para comemorar a Shoah é um importante meio para a transmissão da memória para a humanidade, que tanto precisa dela. Mas nós devemos não apenas chorar pelos mortos, mas também advertir os vivos das novas catástrofes que espreitam a todos nós.
Hoje, nós, os últimos sobreviventes da maior catástrofe jamais perpetrada pelo homem contra o homem, estamos desaparecendo um a um. Logo a História começará a, na melhor das hipóteses, falar com a voz impessoal dos pesquisadores e dos romancistas. Na pior, com a voz dos negacionistas, dos falsários e dos demagogos que fingem que a Shoah é um “mito”. Esse processo já começou. É por isso que temos um dever visceral de compartilhar com o próximo a memória daquilo que vivemos e aprendemos no corpo e na alma. É por isso que devemos alertar nossos filhos, judeus e não-judeus, que o fanatismo e a violência que se espalham em nosso mundo novamente inflamado podem destruir seu universo, assim como outrora destruíram o meu.
A fúria do terremoto no Haiti, que levou mais de 150 mil vidas, nos ensina o quanto a natureza pode ser cruel com o homem. A Shoah, que dizimou todo um povo, nos ensinou que a natureza, mesmo em seus momentos mais cruéis, é benigna, em comparação com o homem quando este perde a razão e suas referências morais. Depois de tanto sangue derramado, um movimento de compaixão e de solidariedade pelas vítimas, todas as vítimas - sejam elas vítimas de catástrofes naturais, de ódio racial, de intolerância religiosa ou de violência terrorista - às vezes se manifesta aqui e acolá. É difícil avaliar o potencial desses sentimentos generosos para o futuro. Enquanto isso, divididos e confusos, nós hesitamos, vacilamos, como sonâmbulos à beira de um abismo. Mas o irrevogável ainda não aconteceu. Nossas chances continuam intactas. Esperemos que o homem possa perceber isso e aprenda a viver com o próximo.
Apesar do perverso cinismo propagado pelos demônios genocidas, me permito dizer: sim, existe um trabalho que liberta. Ele está enraizado na educação, na ciência, na cultura, e, sobretudo na fraternidade e na paz.
*Samuel Pisar é advogado internacional, autor da obra “O Sangue da Esperança”.
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