domingo, 28 de março de 2010

Santa Semana

Por: Jane Bichmacher de Glasman *

Nada é por acaso

Nesta semana são comemoradas a Páscoa Judaica e a Cristã. Não é mera coincidência. Durante muito tempo, no início do Cristianismo, as festas bíblicas eram comemoradas na mesma data, segundo o calendário judaico que é lunissolar. A posterior distinção de calendários não impede que as datas das comemorações voltem a coincidir. A maioria das pessoas sabe que Pessach é a Páscoa Judaica, embora, na verdade, a Páscoa seja o Pessach Cristão.

Liberdade e Libertação

O nome Pessach deriva do hebraico passach que significa saltar, passar por cima; comemora a libertação dos judeus do cativeiro no Egito e é a celebração da liberdade, a história da mobilização do povo para a conquista da liberdade.

Para o povo judeu, recordar a saída da escravidão significa ultrapassar os limites que impedem a realização de seu pleno potencial. Em hebraico, Egito é Mitzraim, que significa estreitezas, limites, angústias, aflições. O “Egito” de uma pessoa pode ser seu egoísmo, desejos primitivos, vícios. Pessach é uma oportunidade de transcender as limitações e realizar o infinito potencial espiritual em cada aspecto da vida, ultrapassando as aflições que estreitam nossos caminhos.

A comemoração de Pessach não foi sempre a mesma. Mudou com o passar dos tempos, mas seu cerne é a liberdade. Originalmente, as comemorações de Pessach eram uma espécie de celebração da primavera, uma festa agrícola, à qual se juntaram as comemorações do Êxodo. “Observa o mês da primavera e guarde o Pessach do Senhor teu Deus, pois no mês da primavera o Senhor teu Deus te tirou do Egito à noite” (Deuteronômio 16:1)

A festa de Pessach dura oito dias. Os dois primeiros e os dois são festas solenes; os intermediários são semifestas. Desde o século I, após a expulsão dos judeus da sua terra, a comemoração de Pessach passou a ser decisiva para que o povo não desaparecesse e continuasse a cultivar a tradição de Pessach como luta pela liberdade (o que justifica, por toda a sua carga simbólica, ter sido mantida pelos criptojudeus através dos séculos, por exemplo).

Seder e Ceia

Em geral, associamos Pessach a uma ceia, assim se referindo ao Seder. Porém Seder significa ordem, em hebraico, relacionando-se à ritualística da noite, que compreende 14 itens a serem seguidos numa ordem específica, dentre os quais, o 10º corresponde à refeição propriamente dita. Embora o Seder de Pessach gire em torno de alimentos, eles têm um caráter mais simbólico que comestível. A principal bandeja que se coloca à mesa, a Keará, não é para ser consumida - sua função é pedagógica. Quando Rabi Gamaliel instituiu o Seder, ele estava preocupado em manter viva a esperança do povo, lembrando que isto foi feito no período da dominação romana.

O Seder é uma representação de um relato histórico, ao vivo, com um narrador, em geral o pai da família, o que se repete todos os anos em cada lar judeu, nas duas primeiras noites. E na vida moderna urbana, quando os horários e ocupações não combinam, o Seder representa um novo papel. Pelo menos durante uma semana de reunião, a família repensa grandes temas pelos quais vale a pena lutar, como liberdade e esperança.

Na primeira noite do Seder, há sempre alguns convidados. É dever convidar aqueles que estão tristes, sós, sem família, para que possam celebrar junto a Festa da Liberdade.

Seder e Eucaristia

A última Ceia de Jesus foi a celebração de um Seder de Pessach. No Catolicismo, dela são mantidos elementos em comum até hoje, desde objetos ritualísticos, com outros significados simbólicos e religiosos, presentes em toda missa. O pão, a hóstia, é a matzá também parte do ofertório. O cálice de vinho, sendo apenas um, vem dos quatro copos tomados durante o Seder e, no judaísmo, o cálice do Kidush (santificação).

Desacertos da História

Lembremos que no terceiro copo de vinho, abrem-se as portas para entrar o profeta Elias, que segundo a tradição visita as casas judias na noite do Seder e que anunciará a vinda do Messias.

Deve-se deixar a porta entreaberta para facilitar a entrada do profeta Elias, mas sendo ele tão poderoso a porta fechada seria um problema? O costume tem também outra origem:

Infelizmente, eventos associados a Pessach, foram responsáveis pela morte de milhares de judeus. Marranos ou criptojudeus (cristãos novos, convertidos à força, que mantinham seu judaísmo em segredo) eram particularmente vigiados e presos em Pessach pela Inquisição, como hereges. A acusação de "assassinato ritual" levou ao massacre e expulsão de diversas comunidades européias: os judeus eram acusados de matarem criancinhas cristãs para fazer matzá com seu sangue (?!)- um absurdo para quem tenha alguma noção de Kashrut, leis dietéticas e de pureza judaicas, que proíbem terminantemente ingestão de sangue.

A porta ficava aberta porque as famílias judias queriam que os vizinhos cristãos pudessem ver a qualquer momento o que os judeus estavam fazendo. Essa calúnia passou à história com o nome de “assassínio ritual” ou libelo de sangue.

Mas nem sempre se podia deixar a porta aberta, como nos tempos da Inquisição, quando o Pessach era celebrado na clandestinidade.
Sem falar na acusação milenar de "judeus deicidas", assassinos de Jesus, e a malhação de Judas, prática tão conhecida no Brasil... Ou a super faxina anual de Pessach, que aliada a outras práticas judaicas de caráter higiênico (como banhos, trocas de roupas, cuidados com os mortos, doentes, etc.) pouparam judeus de morrer tanto quanto os demais, em epidemias como a Peste Negra- e que por isso, foram acusados de causá-las, determinando sua perseguição e massacre...

Embora nas últimas décadas a Igreja Católica venha se empenhando em reconhecer erros do passado e pedir perdão por eles, determinados preconceitos são muito difíceis de serem desarraigados da cultura popular. Em português, eles determinaram conotações vocabulares negativas e pejorativas, como judiar, judiaria, judiação, e a associação de judeu a usurário no anedotário. Como fato histórico, os judeus, originalmente pastores, agricultores, artesãos e profissionais liberais, foram forçados a se dedicar ao comércio devido a restrições a eles impostas na Idade Média, como possuir terras, etc..

Páscoa com Z

Pessach, Passchah ou Páscoa, o essencial é que nós, da raça humana, aprendamos a nos libertar de nossos preconceitos, através do esclarecimento e da prática da tolerância e não discriminação. E que possamos caminhar, assim, para uma verdadeira PAZcoa, PAZcomAmor!

* Doutora em Língua Hebraica, Literaturas e Cultura Judaica, Professora Adjunta, Fundadora e ex-Diretora do Programa de Estudos Judaicos e do Setor de Hebraico –UERJ, escritora.

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